sexta-feira, 10 de julho de 2015

Crítica ao Especifismo - Serge Tardieu

Crítica ao Especifismo
Serge Tardieu


Um fenômeno social relevante para entender a dinâmica capitalista contemporânea é o especifismo. A nova fase do capitalismo iniciada nos anos 1980, tem sua gênese no final dos anos 1960. A fase anterior era marcada por um certo refluxo do movimento operário nos países hiperindustrializados (especialmente EUA e Europa) e surgimento do que alguns chamaram “novos movimentos sociais”, apesar disso não ser algo exato. A partir da crise dos anos 1960 há um processo de tentativa da classe dominante em buscar controlar as lutas sociais para que no mundo hiperindustrializado não haja mais riscos tal como o Maio de 1968. O especifismo foi a resposta do capital às lutas operárias e estudantis radicalizadas, entre outras. Para compreender o capitalismo contemporâneo, é fundamental entender o especifismo e para avançar na busca da transformação social é necessário lutar por sua superação.

O que é o especifismo? O especifismo não é uma ideologia única e sim um conjunto de ideologias e representações que geram determinadas práticas, sentimentos, processos sociais e por isso é mais do que mero epifenômeno superestrutural. O especifismo é uma deformação das lutas específicas de determinados grupos e indivíduos. O modo de produção capitalista gera um processo de exploração do proletariado e outros segmentos da sociedade, uma sociedade fundada na repressão, na opressão, no controle burocrático, entre outros processos sociais derivados do elemento fundamental e fundante, que é a produção de mais-valor e acumulação de capital. Isso é ponto pacífico para todo marxista.

Não é possível compreender a opressão da mulher, o racismo ou a destruição ambiental sem remeter ao modo de produção capitalista e sua dinâmica de reprodução. Da mesma forma, não é possível abolir esses fenômenos sem a destruição do capitalismo. Essa obviedade é, no entanto, obliterada pelo especifismo. A luta específica da mulher contra a opressão, por exemplo, só pode ter êxito total com a abolição do capitalismo. Isso não quer dizer que não se deva lutar contra o sexismo, contra salários diferenciados, entre outras manifestações da opressão da mulher, mas significa que tais reivindicações dentro do capitalismo são parciais e limitadas e que devem ser acompanhados com mais dois elementos fundamentais: um projeto de transformação social, o que Marx chamou de comunismo, e a união com outras lutas de outros segmentos e reivindicações universais. Isso não é criação do autor destas linhas, algumas mulheres já apontaram para isso, em que pese com determinadas limitações, como Alexandra Kollontai e Evelyn Reed[1].

Logo, o que se depreende do que foi dito é que não se trata de ser contra as lutas específicas. Em que pese seja necessário refletir sobre elas e algumas das reivindicações de alguns movimentos ou indivíduos sejam problemáticas, isso é uma questão de forma e não de conteúdo. As lutas específicas só se tornam obstáculos quando não se estruturam de forma unificada com lutas gerais e com o propósito da superação do capitalismo, que significa a abolição completa da razão de existência de tais reivindicações, pois a opressão das crianças e mulheres, o racismo, a destruição ambiental, as guerras, as instituições burocráticas, ou quaisquer outros elementos do capitalismo que gera problemas e reivindicações, serão removidos complementamente.

Por isso o problema do especifismo é o isolamento e separação. O especifismo é justamente esse processo de efetivação de reivindicações ou lutas meramente específicas. A luta específica desagua no especifismo. Ele é expresso, por um lado, por representações e ideologias, e, por outro, por práticas efetivas, sentimentos reais. Esse processo significa que as reivindicações e questões colocadas são do grupo específico e diz respeito apenas a ele ou então voltadas para um determinado fenômeno social separado de todos os outros.

Esse processo não emerge por acaso. O capitalismo é uma sociedade que constitui uma ampla e complexa divisão social do trabalho e para garantir a sua reprodução necessita de efetivar um conjunto de processos de opressão, discriminação, destruição, controle, etc., que gera uma ampla insatisfação. Esse processo pode ser percebido sob formas distintas pelos envolvidos ou interessados. Emerge espontaneamente o surgimento de uma forma de consciência que naturaliza esses processos – o que significa sua aceitação – e outra, que manifesta sua recusa. São duas formas de conceber esses fenômenos, uma que responsabiliza a sociedade, a cultura ou qualquer outra totalidade ou abstração (como “natureza humana”) e outra que responsabiliza o agente imediato de sua concretização. Assim, um negro diante do racismo, uma pessoa preocupada com o meio ambiente diante da poluição crescente produzida pelos carros, um “homem de paz” diante do assassinato coletivo numa guerra, podem ou naturalizar de forma hobbesiana (o egoísmo natural dos seres humanos) ou de outra forma, ou pode pensar que isso é gerado pela cultura ou a sociedade, vistas de forma genérica ou abstrata, ou, ainda, pelos brancos, pela indústria automobilística e pelo país beligerante, respectivamente.

Uma mulher oprimida tende a culpar o homem, agente imediato de sua opressão (embora não apenas ele, como outras mulheres também), o jovem tende a culpar o adulto, etc. No entanto, isso ainda não é especifismo. É apenas uma forma espontânea e imediata de tentar explicar a realidade. Sem dúvida, não deixa de ser uma forma problemática e prejudicial, mas é apenas um esboço, que ao ser ampliado gera o especifismo. Essas representações produzidas na vida cotidiana diferem das ideologias que estão na base do especifismo. O especifismo se fundamenta numa mentalidade reducionista (e em ideologias que abordaremos adiante), produzindo uma percepção distorcida da realidade ao produzir um pensamento maniqueísta. O maniqueísmo se funda na oposição entre o bem e o mal, tidas como essências imutáveis[2]. O discurso feminista nasceu da luta contra o essencialismo (uma suposta essência feminina que legitimaria e justificaria sua situação e, por conseguinte, opressão), mas não escapou da produção de um essencialismo invertido. O Scum Manifesto é um exemplo disso e um antecessor das modernas ideologias feministas. A proposta de Valerie Solanas, exterminar os indivíduos do sexo masculino, tem como base um maniqueísmo, no qual a mulher representaria o bem e o homem o mal.

A fonte do maniqueísmo é o ressentimento generalizado, marcado pelo ódio ou rancor contra aqueles que são identificados como os responsáveis pelo que se opõe. Esse ressentimento é reforçado pelos dominantes através da manipulação dos sentimentos alheios. O nazismo é um bom exemplo disso ao manipular a população alemã e provocar a canalização do seu ressentimento contra os judeus, pois ofusca a luta de classes e a percepção dos problemas sociais e cria um inimigo imaginário para deslocar os conflitos sociais e retirar do foco a classe dominante e o Estado, mudando o alvo e apagando as origens reais da situação social negada. Isso é fonte de ideologias, que sistematizam sob forma coerente, estruturada, o ressentimento, que agora também ganha racionalidade. As chamadas “políticas de identidade” são nada mais do que isso. A recusa ao marxismo e a percepção da totalidade tem a função de criar esse processo de isolamento e gerar uma ideologia para sustentar o especifismo[3].

O movimento operário foi a grande força contestadora do capitalismo em sua primeira fase, a do capitalismo livre-concorrencial. A sua segunda fase, oligopolista, tem a emergência do movimento das mulheres como principal destaque, no qual o sufragismo assume a hegemonia, mas ainda era o movimento operário o grande contestador. Na fase hiperindustrial no mundo imperialista, emergem outros movimentos sociais e eles acabam assumindo mais importância devido ao refluxo do movimento operário, num processo de adaptação ao capitalismo de crédito, consumo generalizado e burocratização crescente, inclusive dos sindicatos. Tais movimentos sociais, no entanto, não eram especifistas, apesar de já existirem tendências embrionárias que apontassem para isso.

É com a crise dos anos 1960, a emergência de movimentos sociais radicais, como o movimento estudantil francês e alemão, bem como em outros países, a radicalização do movimento negro e feminista, entre outros, são o que gera a necessidade de repensar os movimentos sociais por parte dos ideólogos a serviço do capital para impedir que novos maios de 1968 ocorressem. Os ideólogos da moda, especialmente Foucault e Guattari, assumem papel importante como criadores de ideologias para fundamentar o especifismo, assim como logo depois emerge o neofeminismo de gênero. Essas ideologias contrarrevolucionárias visavam combater também noutra frente, pois o movimento operário emergiu sob forma radical na França, Alemanha, Itália, Estados Unidos, a partir da radicalização do movimento estudantil e juvenil e outros movimentos sociais assumiram a mesma posição de radicalidade. A percepção de que os movimentos sociais poderiam gerar um novo “estopim” revolucionário fez com que os ideólogos produzissem ideologias que afastassem eles do movimento operário. O movimento estudantil é um dos que possui dificuldade de cair no especifismo, mas pode ser enfraquecido pelos conflitos internos gerados pelo especifismo. O freio do movimento operário pela burocratização (partidária, sindical, etc.) e sua tentativa de integração na sociedade capitalista marcada pelo consumo ampliado não conteve as novas rebeliões e nem uma nova radicalização do movimento operário, junto com a de alguns movimentos sociais que contribuíram com esse processo.

A nova fase do capitalismo aponta para utilizar um “segundo freio”, além de aumentar a repressão através do uso da força. O primeiro freio é a continuidade do burocratismo, mais forte em alguns aspectos e enfraquecido em outros, e segundo freio criado pelo capitalismo neoliberal é justamente o especifismo. Agora, o movimento operário revolucionário além de ter que se livrar de “sua” burocracia aquartelada em partidos e sindicatos que supostamente o “representa”, agora tem que enfrentar as divisões, os conflitos e grupos isolados. Estes grupos isolados (mulheres, negros, jovens idealistas apostando em alguma causa, etc.) podem ser divididos entre aqueles que agem no seu interior, pois acabam conquistando indivíduos das classes exploradas, e outros que agem no exterior, através de indivíduos oriundos das classes privilegiadas que possuem melhores condições de influenciar o resto e querem abolir a questão do pertencimento de classe. Contudo, como tais grupos e organizações, bem como tendências de pensamento, unem por raça, sexo, causa social, etc., eles são policlassistas e são hegemonizados pelos indivíduos das classes privilegiadas que possuem maior capacidade de manipular, produzir ou reproduzir ideologias, condições financeiras, etc., sem falar no apoio estatal e do capital.

As consequências do especifismo são diversas, mas é possível destacar três: a) divisão das classes exploradas e enfraquecimento de suas lutas; b) criação de uma mentalidade especifista; c) impedimento de superação da situação que gera a necessidade de lutas e movimentos sociais contestadores, o que significa manutenção da situação de opressão, destruição, etc.

O divisionismo, algo bastante comum no capitalismo, no qual até a cor da bandeira do grupo pode gerar divisão, se vê amplificado a um nível extraordinário. Ele enfraquece o movimento operário e das demais classes exploradas na luta cotidiana, pois cria novos obstáculos para avanço da consciência e organização. Da mesma forma, gera um conjunto de processos de corrupção, cooptação, moderação, graças à força persuasiva dos setores das classes privilegiadas que tomam frente nas lutas especifistas.

A mentalidade especifista pode ser oriunda do encontro de uma ideologia, falsa consciência produzida pelos ideólogos, como os já citados e diversos outros, com interesses e sentimentos de pessoas atingidas ou vinculadas afetivamente com o que supostamente combate. O ressentimento provocado pela violência sexual ou pela discriminação racial ao se encontrar com uma explicação supostamente simples de quem é o culpado pelo seu sofrimento pode ser canalizado facilmente por uma ideologia que prega que os homens e brancos (geralmente sem diferenciação) são os opressores que devem ser combatidos ou que prega algo que permite traduzir isso a partir de outras supostas “explicações” mais abstratas. Um indivíduo ligado afetivamente ao Movimento de Libertação dos Animais, por razões psíquicas que não poderemos desenvolver, ao acessar ideologias e manipulação sentimental, tornar-se antihumanista e combater os humanistas e todos que não estão de acordo com a ideologia ou concepção do grupo que efetiva tal movimento.

A última consequência é que o especifismo é ele mesmo um obstáculo para a abolição das formas de opressão, conflitos, processos destrutivos, que supostamente visa combater. Ao isolar e tornar algo apenas do grupo ou fenômeno específico, ele se afasta dos outros grupos e questões, enfraquecendo seu potencial transformador, e mais ainda ao se afastar do movimento operário, fica mais distante de um avanço na luta. Mas ao postular uma concepção ou ideologia que é fora do contexto, fora da totalidade, isolando o problema e sua solução, acaba beneficiando a reprodução das relações de produção capitalistas, e, por conseguinte, do que gera o que combate. Essa é a tragicidade das lutas especifistas, mas que só atinge os ingênuos e manipulados, pois aqueles que estão aquartelados no poder e são financiados pelo Estado ou pelo capital, esse é o objetivo secundário, sendo que o primário são as vantagens pessoais e usufruir de parte do bolo retirado do processo de exploração do proletariado.

A conclusão lógica de tudo isto é que o especifismo é uma tendência conservadora, em todas as suas formas, e que por isso deve ser superado por um novo movimento revolucionário que coloque na ordem do dia a transformação radical e total da sociedade, o que aponta para a resolução dos problemas específicos não para apenas alguns e sim para todos. O projeto de uma nova sociedade na qual a exploração que é a base de toda forma de opressão, destruição, insatisfação, é abolida e com ela todos os indivíduos e grupos se libertam, bem como todas as lutas específicas são resolvidas, pois a revolução proletária significa emancipação humana em geral. Nada de reformismo ou neorreformismo, de querer apenas vantagens dentro do capitalismo ou destruir os outros seres humanos e sim constituir um mundo novo e radicalmente diferente.




[1] Veja: Alexandra Kollontaï, Marxisme et révolution sexuelle, Paris, François Maspero, 1973  e Féminisme et anthropologie, chez Denoel/Gontier, 1980.

[2] Sobre isso veja a análise que Sartre faz do preconceito contra os judeus: Jean-Paul Sartre. Réflexions sur la question juive. Paris: Paul Morihien ed., 1946.

[3] Claro que isso é mais forte em determinados casos, como no movimento das mulheres, negros, etc.

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Publicado em: Revista Marxismo e Autogestão, Ano 01, Num. 02, jul./dez. 2014. 



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