Crítica ao
Especifismo
Serge Tardieu
Um fenômeno social relevante para entender a dinâmica
capitalista contemporânea é o especifismo. A nova fase do capitalismo iniciada
nos anos 1980, tem sua gênese no final dos anos 1960. A fase anterior era
marcada por um certo refluxo do movimento operário nos países
hiperindustrializados (especialmente EUA e Europa) e surgimento do que alguns
chamaram “novos movimentos sociais”, apesar disso não ser algo exato. A partir
da crise dos anos 1960 há um processo de tentativa da classe dominante em
buscar controlar as lutas sociais para que no mundo hiperindustrializado não haja
mais riscos tal como o Maio de 1968. O especifismo foi a resposta do capital às
lutas operárias e estudantis radicalizadas, entre outras. Para compreender o
capitalismo contemporâneo, é fundamental entender o especifismo e para avançar
na busca da transformação social é necessário lutar por sua superação.
O que é o especifismo? O especifismo não é uma ideologia
única e sim um conjunto de ideologias e representações que geram determinadas
práticas, sentimentos, processos sociais e por isso é mais do que mero
epifenômeno superestrutural. O especifismo é uma deformação das lutas
específicas de determinados grupos e indivíduos. O modo de produção capitalista
gera um processo de exploração do proletariado e outros segmentos da sociedade,
uma sociedade fundada na repressão, na opressão, no controle burocrático, entre
outros processos sociais derivados do elemento fundamental e fundante, que é a
produção de mais-valor e acumulação de capital. Isso é ponto pacífico para todo
marxista.
Não é possível compreender a opressão da mulher, o racismo
ou a destruição ambiental sem remeter ao modo de produção capitalista e sua
dinâmica de reprodução. Da mesma forma, não é possível abolir esses fenômenos
sem a destruição do capitalismo. Essa obviedade é, no entanto, obliterada pelo
especifismo. A luta específica da mulher contra a opressão, por exemplo, só
pode ter êxito total com a abolição do capitalismo. Isso não quer dizer que não
se deva lutar contra o sexismo, contra salários diferenciados, entre outras
manifestações da opressão da mulher, mas significa que tais reivindicações
dentro do capitalismo são parciais e limitadas e que devem ser acompanhados com
mais dois elementos fundamentais: um projeto de transformação social, o que
Marx chamou de comunismo, e a união com outras lutas de outros segmentos e
reivindicações universais. Isso não é criação do autor destas linhas, algumas
mulheres já apontaram para isso, em que pese com determinadas limitações, como
Alexandra Kollontai e Evelyn Reed[1].
Logo, o que se depreende do que foi dito é que não se trata
de ser contra as lutas específicas. Em que pese seja necessário refletir sobre
elas e algumas das reivindicações de alguns movimentos ou indivíduos sejam
problemáticas, isso é uma questão de forma e não de conteúdo. As lutas
específicas só se tornam obstáculos quando não se estruturam de forma unificada
com lutas gerais e com o propósito da superação do capitalismo, que significa a
abolição completa da razão de existência de tais reivindicações, pois a
opressão das crianças e mulheres, o racismo, a destruição ambiental, as
guerras, as instituições burocráticas, ou quaisquer outros elementos do
capitalismo que gera problemas e reivindicações, serão removidos
complementamente.
Por isso o problema do especifismo é o isolamento e
separação. O especifismo é justamente esse processo de efetivação de
reivindicações ou lutas meramente específicas. A luta específica desagua no
especifismo. Ele é expresso, por um lado, por representações e ideologias, e,
por outro, por práticas efetivas, sentimentos reais. Esse processo significa
que as reivindicações e questões colocadas são do grupo específico e diz
respeito apenas a ele ou então voltadas para um determinado fenômeno social
separado de todos os outros.
Esse processo não emerge por acaso. O capitalismo é uma
sociedade que constitui uma ampla e complexa divisão social do trabalho e para
garantir a sua reprodução necessita de efetivar um conjunto de processos de
opressão, discriminação, destruição, controle, etc., que gera uma ampla insatisfação.
Esse processo pode ser percebido sob formas distintas pelos envolvidos ou
interessados. Emerge espontaneamente o surgimento de uma forma de consciência
que naturaliza esses processos – o que significa sua aceitação – e outra, que
manifesta sua recusa. São duas formas de conceber esses fenômenos, uma que
responsabiliza a sociedade, a cultura ou qualquer outra totalidade ou abstração
(como “natureza humana”) e outra que responsabiliza o agente imediato de sua
concretização. Assim, um negro diante do racismo, uma pessoa preocupada com o
meio ambiente diante da poluição crescente produzida pelos carros, um “homem de
paz” diante do assassinato coletivo numa guerra, podem ou naturalizar de forma
hobbesiana (o egoísmo natural dos seres humanos) ou de outra forma, ou pode
pensar que isso é gerado pela cultura ou a sociedade, vistas de forma genérica
ou abstrata, ou, ainda, pelos brancos, pela indústria automobilística e pelo
país beligerante, respectivamente.
Uma mulher oprimida tende a culpar o homem, agente imediato
de sua opressão (embora não apenas ele, como outras mulheres também), o jovem
tende a culpar o adulto, etc. No entanto, isso ainda não é especifismo. É
apenas uma forma espontânea e imediata de tentar explicar a realidade. Sem
dúvida, não deixa de ser uma forma problemática e prejudicial, mas é apenas um
esboço, que ao ser ampliado gera o especifismo. Essas representações produzidas
na vida cotidiana diferem das ideologias que estão na base do especifismo. O
especifismo se fundamenta numa mentalidade reducionista (e em ideologias que
abordaremos adiante), produzindo uma percepção distorcida da realidade ao
produzir um pensamento maniqueísta. O maniqueísmo se funda na oposição entre o
bem e o mal, tidas como essências imutáveis[2]. O
discurso feminista nasceu da luta contra o essencialismo (uma suposta essência
feminina que legitimaria e justificaria sua situação e, por conseguinte,
opressão), mas não escapou da produção de um essencialismo invertido. O Scum Manifesto é um exemplo disso e um
antecessor das modernas ideologias feministas. A proposta de Valerie Solanas,
exterminar os indivíduos do sexo masculino, tem como base um maniqueísmo, no
qual a mulher representaria o bem e o homem o mal.
A fonte do maniqueísmo é o ressentimento generalizado, marcado
pelo ódio ou rancor contra aqueles que são identificados como os responsáveis
pelo que se opõe. Esse ressentimento é reforçado pelos dominantes através da
manipulação dos sentimentos alheios. O nazismo é um bom exemplo disso ao manipular
a população alemã e provocar a canalização do seu ressentimento contra os
judeus, pois ofusca a luta de classes e a percepção dos problemas sociais e
cria um inimigo imaginário para deslocar os conflitos sociais e retirar do foco
a classe dominante e o Estado, mudando o alvo e apagando as origens reais da
situação social negada. Isso é fonte de ideologias, que sistematizam sob forma
coerente, estruturada, o ressentimento, que agora também ganha racionalidade.
As chamadas “políticas de identidade” são nada mais do que isso. A recusa ao
marxismo e a percepção da totalidade tem a função de criar esse processo de
isolamento e gerar uma ideologia para sustentar o especifismo[3].
O movimento operário foi a grande força contestadora do
capitalismo em sua primeira fase, a do capitalismo livre-concorrencial. A sua
segunda fase, oligopolista, tem a emergência do movimento das mulheres como
principal destaque, no qual o sufragismo assume a hegemonia, mas ainda era o
movimento operário o grande contestador. Na fase hiperindustrial no mundo
imperialista, emergem outros movimentos sociais e eles acabam assumindo mais
importância devido ao refluxo do movimento operário, num processo de adaptação
ao capitalismo de crédito, consumo generalizado e burocratização crescente,
inclusive dos sindicatos. Tais movimentos sociais, no entanto, não eram
especifistas, apesar de já existirem tendências embrionárias que apontassem
para isso.
É com a crise dos anos 1960, a emergência de movimentos
sociais radicais, como o movimento estudantil francês e alemão, bem como em
outros países, a radicalização do movimento negro e feminista, entre outros,
são o que gera a necessidade de repensar os movimentos sociais por parte dos
ideólogos a serviço do capital para impedir que novos maios de 1968 ocorressem.
Os ideólogos da moda, especialmente Foucault e Guattari, assumem papel
importante como criadores de ideologias para fundamentar o especifismo, assim
como logo depois emerge o neofeminismo de gênero. Essas ideologias
contrarrevolucionárias visavam combater também noutra frente, pois o movimento
operário emergiu sob forma radical na França, Alemanha, Itália, Estados Unidos,
a partir da radicalização do movimento estudantil e juvenil e outros movimentos
sociais assumiram a mesma posição de radicalidade. A percepção de que os
movimentos sociais poderiam gerar um novo “estopim” revolucionário fez com que
os ideólogos produzissem ideologias que afastassem eles do movimento operário.
O movimento estudantil é um dos que possui dificuldade de cair no especifismo,
mas pode ser enfraquecido pelos conflitos internos gerados pelo especifismo. O
freio do movimento operário pela burocratização (partidária, sindical, etc.) e
sua tentativa de integração na sociedade capitalista marcada pelo consumo
ampliado não conteve as novas rebeliões e nem uma nova radicalização do
movimento operário, junto com a de alguns movimentos sociais que contribuíram
com esse processo.
A nova fase do capitalismo aponta para utilizar um “segundo
freio”, além de aumentar a repressão através do uso da força. O primeiro freio
é a continuidade do burocratismo, mais forte em alguns aspectos e enfraquecido
em outros, e segundo freio criado pelo capitalismo neoliberal é justamente o
especifismo. Agora, o movimento operário revolucionário além de ter que se livrar
de “sua” burocracia aquartelada em partidos e sindicatos que supostamente o “representa”,
agora tem que enfrentar as divisões, os conflitos e grupos isolados. Estes
grupos isolados (mulheres, negros, jovens idealistas apostando em alguma causa,
etc.) podem ser divididos entre aqueles que agem no seu interior, pois acabam
conquistando indivíduos das classes exploradas, e outros que agem no exterior,
através de indivíduos oriundos das classes privilegiadas que possuem melhores
condições de influenciar o resto e querem abolir a questão do pertencimento de
classe. Contudo, como tais grupos e organizações, bem como tendências de
pensamento, unem por raça, sexo, causa social, etc., eles são policlassistas e
são hegemonizados pelos indivíduos das classes privilegiadas que possuem maior
capacidade de manipular, produzir ou reproduzir ideologias, condições
financeiras, etc., sem falar no apoio estatal e do capital.
As consequências do especifismo são diversas, mas é possível
destacar três: a) divisão das classes exploradas e enfraquecimento de suas
lutas; b) criação de uma mentalidade especifista; c) impedimento de superação
da situação que gera a necessidade de lutas e movimentos sociais contestadores,
o que significa manutenção da situação de opressão, destruição, etc.
O divisionismo, algo bastante comum no capitalismo, no qual
até a cor da bandeira do grupo pode gerar divisão, se vê amplificado a um nível
extraordinário. Ele enfraquece o movimento operário e das demais classes
exploradas na luta cotidiana, pois cria novos obstáculos para avanço da
consciência e organização. Da mesma forma, gera um conjunto de processos de
corrupção, cooptação, moderação, graças à força persuasiva dos setores das
classes privilegiadas que tomam frente nas lutas especifistas.
A mentalidade especifista pode ser oriunda do encontro de
uma ideologia, falsa consciência produzida pelos ideólogos, como os já citados
e diversos outros, com interesses e sentimentos de pessoas atingidas ou
vinculadas afetivamente com o que supostamente combate. O ressentimento
provocado pela violência sexual ou pela discriminação racial ao se encontrar
com uma explicação supostamente simples de quem é o culpado pelo seu sofrimento
pode ser canalizado facilmente por uma ideologia que prega que os homens e brancos
(geralmente sem diferenciação) são os opressores que devem ser combatidos ou
que prega algo que permite traduzir isso a partir de outras supostas “explicações”
mais abstratas. Um indivíduo ligado afetivamente ao Movimento de Libertação dos
Animais, por razões psíquicas que não poderemos desenvolver, ao acessar
ideologias e manipulação sentimental, tornar-se antihumanista e combater os
humanistas e todos que não estão de acordo com a ideologia ou concepção do
grupo que efetiva tal movimento.
A última consequência é que o especifismo é ele mesmo um
obstáculo para a abolição das formas de opressão, conflitos, processos
destrutivos, que supostamente visa combater. Ao isolar e tornar algo apenas do
grupo ou fenômeno específico, ele se afasta dos outros grupos e questões,
enfraquecendo seu potencial transformador, e mais ainda ao se afastar do
movimento operário, fica mais distante de um avanço na luta. Mas ao postular
uma concepção ou ideologia que é fora do contexto, fora da totalidade, isolando
o problema e sua solução, acaba beneficiando a reprodução das relações de
produção capitalistas, e, por conseguinte, do que gera o que combate. Essa é a
tragicidade das lutas especifistas, mas que só atinge os ingênuos e
manipulados, pois aqueles que estão aquartelados no poder e são financiados
pelo Estado ou pelo capital, esse é o objetivo secundário, sendo que o primário
são as vantagens pessoais e usufruir de parte do bolo retirado do processo de
exploração do proletariado.
A conclusão lógica de tudo isto é que o especifismo é uma
tendência conservadora, em todas as suas formas, e que por isso deve ser
superado por um novo movimento revolucionário que coloque na ordem do dia a
transformação radical e total da sociedade, o que aponta para a resolução dos
problemas específicos não para apenas alguns e sim para todos. O projeto de uma
nova sociedade na qual a exploração que é a base de toda forma de opressão,
destruição, insatisfação, é abolida e com ela todos os indivíduos e grupos se
libertam, bem como todas as lutas específicas são resolvidas, pois a revolução
proletária significa emancipação humana em geral. Nada de reformismo ou
neorreformismo, de querer apenas vantagens dentro do capitalismo ou destruir os
outros seres humanos e sim constituir um mundo novo e radicalmente diferente.
[1]
Veja: Alexandra Kollontaï, Marxisme et révolution sexuelle,
Paris, François Maspero, 1973 e Féminisme et anthropologie, chez
Denoel/Gontier, 1980.
[3]
Claro que isso é mais forte em determinados casos, como no movimento das
mulheres, negros, etc.
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Publicado em: Revista Marxismo e Autogestão, Ano 01,
Num. 02, jul./dez. 2014.
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